CIÚME & TRAIÇÃO
Algumas reflexões antropológicas - Mirian Goldenberg
Em Otelo, de Shakespeare, ele é “o monstro de olhos verdes” e provoca o
assassinato de Desdêmona. Ele também destrói o amor de infância de Capitu e
Bentinho, em Dom Casmurro, de Machado de Assis. O ciúme é o gatilho em 57% das agressões entre os casais, de acordo com pesquisa realizada com universitários de 40 países. Mas, como diria o poeta, o ciúme pode ser “o perfume do amor”. Na literatura, nos filmes, nas novelas e na vida real, o ciúme está quase sempre associado à traição.
Desde o meu primeiro livro “Nicarágua, Nicaraguita: um povo em armas constrói a democracia” dediquei algumas linhas à discussão do ciúme e da traição. Fui à Nicarágua três vezes, na década de 80, em plena revolução sandinista e, para minha surpresa, a maior reclamação das mulheres era a infidelidade masculina. Elas não reclamavam da guerra, não reclamavam da miséria, não reclamavam da falta de apoio internacional: reclamavam das traições de seus parceiros. Foi a primeira vez que entrei em contato com um tema que aflige as mulheres, não só as nicaraguenses, mas também as brasileiras.
Esse estudo acabou inspirando outros que realizei como “A Outra: estudos antropológicos sobre a identidade da amante do homem casado” e “Ser homem, ser mulher: dentro e fora do casamento”.
Na pesquisa que estou realizando, desde janeiro de 1998, com 1279 homens e
mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, também encontrei esta
associação entre ciúme e infidelidade. Quando pergunto sobre os problemas que
efetivamente vivem ou viveram em seus relacionamentos amorosos, os discursos de homens e mulheres são muito sintonizados. Nas respostas, temos que o principal problema dos relacionamentos é o ciúme. A infidelidade aparece como o segundo maior problema dos casais.
Ao serem questionados se já foram infiéis, 60% dos homens e 47% das mulheres
afirmaram que sim. Quando responderam se já foram traídos, 41% das mulheres e 32% dos homens disseram que sim. As razões para a infidelidade mais apontadas pelas mulheres foram: falta de amor, insatisfação, crise ou problemas do relacionamento. Já os homens apontaram, além dos mesmos motivos, outros como: “natureza masculina”, “instinto”, “aconteceu”, “oportunidade”, “atração”, “desejo”, “vontade”, “tesão”, “ testicocefalia ”, “não consegui resistir”, “para não me arrepender das oportunidades que perdi”. É interessante destacar que muitos homens disseram que não tinham nenhum problema com a esposa ou namorada, mas que eram “poligâmicos por natureza”, justificando assim suas traições. A idéia de uma “natureza” masculina diferente da
feminina tem sido discutida por muitos autores. Georg Simmel destacou que a
sexualidade masculina seria centrífuga e a feminina, centrípeta. Em outras palavras, os homens teriam relações sexuais com mais parceiras porque não se relacionam com uma única mulher, mas com a mulher em geral. As mulheres, ao contrário, se apaixonam por um homem particular e têm, portanto, relações com menos parceiros, visto que a entrega sexual da mulher é muito mais intensa e subjetiva.
A Folha de São Paulo, analisando os dados do IBGE de 1996, mostrou que 71%
dos pedidos de separação feitos por mulheres foram motivados por traição masculina. A infidelidade é tão recorrente no Brasil que movimenta um mercado próprio. Na Internet, um site chamado Álibi presta um serviço para arrumar, justamente, álibis. Eles enviam convites para eventos, fazem reservas em hotéis e prestam assistência telefônica. Assim, se uma esposa quiser entrar em contato com seu marido, uma recepcionista atenderá de maneira a garantir que ela acredite que ele está ocupado trabalhando ou em algum evento importantíssimo.
O fato interessante é que apesar do ciúme e infidelidade serem apontados como os principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, os homens e mulheres pesquisados exigem sinceridade, lealdade e franqueza absoluta em seus
relacionamentos, o que pode ser visto como um dos principais paradoxos presentes nos seus discursos. Ao mesmo tempo em que reivindicam privacidade, espaço, independência e autonomia, entre outros “novos” ideais de liberdade e individualidade, os pesquisados ressaltam valores que podem ser vistos como simbióticos-românticos de sinceridade absoluta, cumplicidade, interdependência e complementaridade. Queixas diretamente relacionadas ao ciúme e possessividade, como “controle excessivo por parte do parceiro”, “cobranças”, “invasão de espaço”, “falta de privacidade” apareceram, no material analisado, juntamente com outras como “falta de sinceridade”, “falta de confiança”, “mentiras”.
Quando levados a discorrer sobre o que procuram em um parceiro amoroso, os
pesquisados colocaram, em boa parte das respostas, a expectativa por um
relacionamento fiel, estável, sério e duradouro. Há uma expectativa de fidelidade mútua, sendo a traição considerada um problema, na maior parte das vezes, insuperável. É evidente a contradição entre a permanência de valores tradicionais, como estabilidade, segurança, fidelidade e outros considerados modernos, como experimentação, privacidade, autonomia, independência.
Cabe, então, perguntar: como conciliar sinceridade absoluta e cumplicidade com
respeito à privacidade e à individualidade? Como combinar, em um mesmo
relacionamento, o desejo de compromisso com o de preservação dos espaços
individuais?
Talvez, mais importante do que procurar as respostas para estas questões, o
momento seja de viver, intensamente, nossas dúvidas. Fazemos parte de uma geração que aposta e investe em uma maior qualidade do relacionamento amoroso. Mudar implica perdas e riscos, abrir mão de privilégios e questionar as imposições sociais, ter uma atitude criativa e crítica frente à própria vida, deixando de lado falsos mitos de felicidade.
Temos a oportunidade - e o desafio - de inventar o casal, o casamento, a família, a vida que queremos para nós. Nesta invenção, em que os estereótipos sobre "ser homem" e "ser mulher" não deveriam ter lugar, acredito que ganham homens e mulheres que, sentindo-se responsáveis pela construção cotidiana da relação amorosa, não aceitam falsas promessas de uma existência mais fácil e segura, não adotam posturas de vítimas e não gastam suas energias em acusações mútuas, cobranças e fantasias.
MIRIAN GOLDENBERG é doutora em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu
Nacional/UFRJ e professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. É autora, entre outros livros, de “A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais”, “A Outra: estudos antropológicos sobre a identidade da amante do homem casado”, “Toda Mulher é Meio Leila Diniz”, “Os Novos Desejos” e “Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca” (todos da Editora Record)
Nenhum comentário:
Postar um comentário